O fedor das Mídias Sociais
O título original do post é "enshittification" e o autor do artigo refere-se a uma guerra cultural da qual ninguém fala, mas com a qual devemos nos preocupar.
O artigo abaixo foi publicado em Persuasion, um Substack que assino. Ele foi assinado por William A. Finnegan, pseudônimo usado por um ex-alto funcionário do governo George W. Bush. Ele é autor de duas publicações do Substack: The Long Memo, sobre política dos EUA e global; e Borderless Living, um guia prático para construir uma vida além das fronteiras.
Obs.: para deixar mais claro a minha opinião, traduzi o neologismo do título original, “enshittification”, por “esmerdeamento”. Deixei o termo original apenas no título e na primeira frase em respeitos aos puristas.
Antes, o haikai
Meu priminho na rede
Comendo os grãos de milho que catava
No cocô: feliz idade!
O texto do Bill
Enshittification
Geralmente falamos sobre "enshittification" em termos de experiência do usuário. A morte lenta das plataformas, à medida que priorizam retornos trimestrais em detrimento de qualquer coisa que se assemelhe a serviço público.
O Instagram limita o alcance orgânico. Visitar a Amazon é como andar por um shopping projetado por um cassino. O Google Search está tão cheio de anúncios que mal funciona mais como busca. O Facebook é uma máquina de ódio. O TikTok é uma máquina caça-níqueis de dopamina, organizada por algoritmos opacos. Não é um bug. É o modelo de negócio.
Cada plataforma eventualmente segue o mesmo arco: a nobreza dá lugar à monetização, e a monetização dá lugar ao esmerdeamento. Mas o verdadeiro custo não é apenas uma experiência pior na internet. É uma sociedade pior.
Em 1994, apenas para escolher um ponto de partida, a internet estava começando a se infiltrar na vida cotidiana. Lembro-me claramente: HTML bruto, texto preto em fundos cinza e os primeiros banners piscantes no site da Casa Branca. Al Gore estava evangelizando a “Information Superhighway”. O Netscape tinha acabado de ser lançado, com seu gigante “N” animado prometendo um futuro de conhecimento ilimitado na ponta dos nossos dedos. Por um tempo, parecia que estávamos vivendo algo revolucionário. O acesso a mais informações nos fortaleceria. A internet seria tão transformadora quanto a imprensa de Gutenberg — ou assim acreditávamos.
Mas o que não conseguimos entender foi isto: mais informação não apenas fortalece a verdade. Ela fortalece o ruído. Ela possibilita a fraude. Ela fortalece a ilusão.
Os antigos guardiões — jornais, emissoras, editoras — eram lentos, tendenciosos e imperfeitos. Mas eles desempenhavam uma função básica de filtragem. Quando eles caíram, o que os substituiu não foi um mercado puro de ideias.
Foi um mercado de indignação.
E foi aí que o verdadeiro esmerdeamento começou.
Otimização Algorítmica como Sabotagem Cívica
A promessa original da tecnologia era a libertação: informação na ponta dos dedos, comunidades sem fronteiras, poder para o povo.
Mas em algum momento do caminho, a otimização engoliu a aspiração. Cada algoritmo foi encarregado de uma missão única: maximizar o engajamento. Mantenha as pessoas navegando, comprando e reagindo.
E o que impulsiona o engajamento? Nossos instintos mais básicos: indignação, medo, tribalismo. As partes mais límbicas e menos racionais de nós mesmos.
As plataformas não inventaram a divisão. Eles não criaram nossos preconceitos ou ansiedades.
Mas elas os industrializaram — em grande escala.
As mídias sociais criaram ciclos de feedback em que apenas os extremos chegaram ao topo, porque os extremos geram cliques — e os cliques geram dinheiro. Onde a identidade tribal é constantemente reafirmada, porque a fidelidade alimenta fluxos de receita.
Isso não é novidade. Mídia é entretenimento, e entretenimento é um negócio. Já era possível ver os contornos dessa dinâmica antes mesmo da internet se consolidar completamente. Figuras como Morton Downey Jr. [vídeo no final do post], Howard Stern, Don Imus, Jerry Springer, Rush Limbaugh e Maury Povich construíram impérios de mídia com base na indignação, na queixa e na humilhação. Eles eram as encarnações reais de Howard Beale[vídeo no final do post], pregando fúria para uma congregação nacional sintonizada noite após noite.
Mas eles enfrentaram limites reais: redes, anunciantes, padrões públicos. Ainda havia atrito. Ainda há limites que, se ultrapassados, podem acabar com uma carreira. Você pode ficar "muito bravo", mas nem tudo vai para o ar automaticamente.
Mas Alex Jones era tudo isso combinado: no limite, em velocidade 10x, sem barreiras. Tudo o que esse cara fez acabou na internet e foi transmitido para milhões de pessoas.
Quando a internet industrializou a atenção, ela eliminou todas as restrições externas.
Jones não precisava de uma rede para renová-lo. Ele não precisava que os anunciantes o tolerassem.
Ele só precisava de cliques.
Os algoritmos não se importavam se ele estava certo. Eles não se importavam com quem ele machucava, que verdade ele destruia ou quem era atropelado — mas apenas com o fato de que o público estava assistindo.
Na busca por lucros, as plataformas arquitetaram uma catástrofe cívica. Eles quebraram os contratos sociais básicos dos quais as sociedades liberais dependem: a crença de que as pessoas podem discordar, que a verdade é um projeto compartilhado, que o acordo é possível.
Em vez disso, eles nos reprogramaram para ver cada desacordo como uma ameaça existencial — e cada oponente como um monstro.
Aquele tio maluco que acreditava que a Terra era plana? Antigamente, a família o teria controlado.
Agora ele entra na internet, encontra cinco milhões de pessoas como ele e vê sua crença marginal se normalizar da noite para o dia.
Em uma época em que temos mais informações disponíveis do que em qualquer outro momento da história humana, parecemos mais desconectados da verdade, da epistemologia e do raciocínio empírico básico do que nunca.
Isso não aconteceu acidentalmente.
Aconteceu algoritmicamente.
A Deriva Bipartidária Em Direção Ao Autoritarismo
A maioria das discussões sobre "ameaças à democracia" concentra-se estritamente em eleições, leis ou líderes políticos. Especialmente agora, com Donald Trump, que parece ser a personificação do autoritarismo. Entendo. O homem está realmente fora dos trilhos.
Mas muito menos pessoas estão lutando contra a podridão mais profunda: a demolição psicológica da confiança que permite que quase 80 milhões de estadunidenses digam: Claro, vamos eleger um criminoso condenado, que há quatro anos cometeu sedição contra os Estados Unidos e tem uma vida inteira mentindo sobre um vice-presidente em exercício com um histórico de serviço público.
Em uma democracia saudável, as instituições funcionam como ligamentos que unem sociedades diversas. Tribunais, legislaturas, mídia, organizações cívicas — nenhuma delas é perfeita, mas todas são essenciais para criar regras compartilhadas de engajamento. Eles criam previsibilidade. Responsabilidade.
Quando as pessoas perdem a fé nesses ligamentos, elas não desistem simplesmente dos políticos. Eles desistem da própria ideia de que persuasão ou acordo são possíveis. E isso não é apenas problemático. É assim que as democracias se desintegram.
A cientista política Barbara F. Walter escreveu extensivamente sobre esse fenômeno. Em How Civil Wars Start, ela argumenta que as democracias entram em colapso não quando as pessoas discordam, mas quando sua lealdade a grupos de identidade supera sua lealdade ao projeto cívico mais amplo. Quando a competição política se torna uma disputa de soma zero pela sobrevivência, os homens fortes não precisam tomar o poder pela força — as pessoas o entregam a eles voluntariamente, por medo e desespero.
Porque, quando a identidade endurece, o autoritarismo deixa de parecer maligno. Começa a parecer eficiente. A questão muda de “Quem melhor protege a democracia liberal?” para “Quem lutará ao meu lado por todos os meios necessários?” Homens fortes surgem não apenas porque enganam as massas, mas porque o terreno social foi amolecido por anos de erosão — algorítmica e de outras naturezas.
E sejamos claros: essa tendência é bipartidária.
É tentador pensar que o "outro" lado é especialmente vulnerável à tentação autoritária. Mas o esmerdeamento não é partidário. Se a esquerda flerta cada vez mais com o antiliberalismo em nome da justiça social, e a direita o abraça em nome da tradição ou da segurança, é porque ambos os lados estão nadando nas mesmas águas envenenadas.
Quando cada instituição se sente capturada, quebrada ou falsa, a fome por uma "limpeza geral" cresce. Quando as plataformas recompensam a conspiração em detrimento da razão, a lealdade em detrimento da integridade, o desempenho em detrimento da substância, a própria democracia se torna uma vítima.
Esmerdeamento como a Nova Guerra Cultural
A verdadeira guerra cultural não é entre direita e esquerda. A verdadeira guerra cultural acontece entre aqueles que tentam preservar qualquer forma de liberdade ordenada e aqueles que, consciente ou inconscientemente, estão pressionando pelo colapso.
E não se engane: o colapso tem um apelo estético. A raiva é energizante. O cinismo parece mais inteligente que a esperança. Observar o sistema queimar é catártico. Mas o colapso não termina com um fogo purificador. Termina em cinzas — e as pessoas mais bem preparadas para governar as cinzas não são aquelas que clamam mais alto por justiça.
O que poucos reconhecem é que o colapso não é puramente orgânico. Está sendo curado. Incentivado. Gerando lucros.
Os "caras da tecnologia" — os capitalistas de risco, os fundadores de plataformas, os chamados defensores absolutos da liberdade de expressão — não são atores neutros. Eles fizeram escolhas. Eles construíram sistemas que recompensam a indignação em vez da consideração, o tribalismo em vez da tolerância, a provocação em vez da persuasão.
Corrigir isso não tem a ver com nostalgia da "boa internet" ou com jogos de RPG como defensores da "verdadeira América". Trata-se de reconhecer que o esmerdeamento não está acontecendo apenas conosco; está acontecendo através de nós — e muitas vezes para o lucro de outra pessoa.
Cada vez que recompensamos o sensacionalista em vez de o substancial, o inflamatório em vez de o informativo, estamos votando — com nossa atenção e nossos bolsos — por um futuro mais sombrio.
Recuperando a Praça Pública
Se quisermos reagir, o primeiro passo é reconhecer o que está em jogo.
Uma UX ruim é irritante, mas a confiança quebrada é existencial.
Resistir ao esmerdeamento não significa apenas se desconectar ou rolar menos a tela. Trata-se de resgatar ativamente os bens cívicos comuns, usando as mesmas plataformas sequestradas por raiva e lucro para reconstruir movimentos de confiança, resiliência e pluralismo.
Escritores, pensadores, criadores: não somos participantes neutros.
Se as elites tecnológicas se recusarem a administrar as plataformas de forma responsável, então nós devemos fazê-lo. Precisamos construir espaços onde as ideias sejam testadas em relação à realidade, onde a discordância não seja tratada como heresia e onde a razão seja mais valiosa que a viralidade.
Isso não será fácil. Exigirá uma leitura mais lenta. Compartilhamento menos reativo. Mais curiosidade sobre visões opostas. Isso significará construir novas redes de vida cívica presencial que os algoritmos não possam corromper facilmente — e sermos intencionais sobre como usamos os espaços digitais, recusando-nos a deixar que eles nos transformem em armas.
Substack, BlueSky, Medium, YouTube — essas são apenas ferramentas.
Eles podem ser usado para corrosão ou para construção. A diferença não está na plataforma. Está nas pessoas que escolhem como usá-lo.
A praça pública não se recuperará. Ela será reconstruída — pedaço por pedaço — por aqueles dispostos a fazer o trabalho lento e nada glamoroso de restaurar a confiança, a resiliência e a imaginação cívica.
Alguns já estão começando: criando redes independentes para análises confiáveis, resiliência prática e investigação compartilhada.
Algumas das melhores ideias novas estão acontecendo fora das instituições tradicionais — em plataformas como o Substack — onde escritores estão reconstruindo a confiança, restaurando normas cívicas e ancorando uma compreensão compartilhada da verdade.
Essas novas comunidades não estão enraizadas na indignação performática, mas na esperança obstinada de que a realidade compartilhada ainda importa. Movimentos que não buscam incendiar a casa, mas construir outras melhores — tijolo por tijolo, fora dos muros envenenados.
Não será fácil. Não será rápido.
Mas se a democracia liberal tiver um futuro, será porque cidadãos livres — não bilionários, nem algoritmos — escolheram lembrar o que a liberdade exige.
E se essa aposta falhar, não será porque "o outro lado" foi muito mau.
Isso acontecerá porque todos nós — esquerda e direita — navegamos, compartilhamos, monetizamos e nos condenamos a um futuro que estávamos muito distraídos ou muito cínicos para reconstruir.